Por David da Costa Coelho
Os romanos criaram um império que durou milênios, alguns acreditam que ele jamais terminou porque o Papa e o Vaticano são herdeiros diretos deste império. No entanto, para um de seus cidadãos, Lucínius; ainda do tempo da união com os etruscos, ele jamais terminou porque ele era seu cidadão mais antigo vivo; em pleno século XXI...
Sua história começa quando ele, [1]endividado, acaba sendo levado à escravidão por dívida. Como tal, se tornou escravo de um patrício muito rico, mas seu senhor, ao contrario de seus iguais no senado romano, não se preocupava em conspirações pelo poder, ou tentativas de obter mais posses, para ele, as que possuía já dava para inúmeras vidas. Seu prazer, no entanto era outro, gostava de obras de artes que os romanos conquistavam ao longo da expansão do império, e confiscavam de vários povos, e que agora podiam ser compradas baratas das mãos de soldados e saqueadores. Lucínius era seu escravo de confiança por ser de origem romana, ter estudo e estar sempre interessado nos desejos de seu mestre.
Fulvio Marcelus, tinha muitas peças etruscas, era descendente direto da nobreza daquele povo, pois ainda faziam parte da elite romana por casamentos arranjados ao longo da formação histórica do futuro império. Sua coleção era vasta, mas soube de uma joia rara trazida de uma cidade cartaginesa, anos antes do inicio das [2]guerras púnicas. Depois de muitas décadas, só o império romano sobreviveu e os lucros e as relíquias daquele período podiam ser adquiridas por preços bem pequenos. No entanto, a peça rara em questão estava por um preço exorbitante, 500 denários, uma verdadeira fortuna em moedas de ouro, mas em seu intimo, ele sabia que aquela peça de metal estranho, com estranhas figuras entalhadas, muito superior a tudo que os romanos sabiam fazer e conheciam, era de longe um tesouro sem o qual sua coleção não podia ficar sem. Além do mais ele era o maior colecionador romano. Seu prestigio estava em jogo, e para isso o dinheiro nada mais é que um instrumento vil para trocas.
Contudo, embora fosse muito rico, ter financiado artistas e generais em lutas, bem como comerciantes que ainda não haviam lhe pago, dilapidou seu patrimônio. Era rico, mas seu dinheiro estava praticamente investido em diversas áreas. Era também dono de um [3]ludus, com vários gladiadores prestigiados, sua escola era a solução de seu problema. Ofereceu três gladiadores famosos pela peça. No valor de 600 denários, a diferença viria em outras peças.
O acordo foi fechado e coube a Lucínius buscar a relíquia e entregar a seu amo e senhor. Mas ao tocar a peça com as mãos para colocá-la no baú que outros escravos conduziam, protegidos pelos soldados de seu senhor, ele sentiu um fogo lhe queimar internamente. Era como se existisse dentro daquela relíquia uma energia espectral, aguardando o toque de uma pessoa especifica, coisa que ocorreu com o escravo, e agora a peça não carregava mais a energia, ela se transferiu para Lucínius, e daquele dia em diante, sua vida jamais seria extinta; mas seu corpo sim.
Ao longo dos anos ele acompanhou seu mestre em mais buscas por peças e joias, e como ocorre com todo ser humano, a velhice levou seu amo, e fez o mesmo estrago nele. Contudo, enquanto seu mestre morreu, com ele algo diferente ocorreu, pois estava presente no leito de morte de seu senhor. Quando a alma já deixava o corpo, uma energia invisível aos humanos emanou do corpo do escravo e capturou a alma de seu antigo senhor, e no segundo seguinte, seu corpo físico também morre; mas não sua alma e a que carregava escravizada e controlada pela sua.
Sem corpo físico, mas consciente de quem é e do legado eterno que recebeu, ele busca um novo hospedeiro, mas não qualquer um porque sabe que só a morte o libertará novamente. Felizmente, Flavio Marcelus, o filho de seu antigo mestre, estava próximo e a disposição. Sua alma controladora invade o corpo e a mente da vitima, e a alma de Flavio agora se junta a de seu tio, escravizada eternamente pelo dom que o escravo havia recebido em vida. De posse do novo corpo e de todas suas memórias, Lucínius agora é um homem rico, dono de milhares de escravos, sabendo instintivamente que ao morrer, em alguns anos, deverá escolher outro hospedeiro a sua altura e posses. Para tanto ele mantém todos os seus parentes ricos próximos de si. Ao longo dos anos ele segue a mesma politica de seu ‘tio’, preocupando-se apenas em adquirir bens.
E assim, ao longo de séculos, morte após morte, ele trocava de corpo e aprisionava mais e mais almas, pois viveu neste tempo centenas de vidas. Mas com poder e dinheiro, acabou se tornando um [4]hedonista imortal, afinal, trocava de corpo para isso. Descobriu um imenso prazer em matar, torturar e destruir pessoas, pois quando morriam, absorvia-lhes a alma, e isso aumentava ainda mais seu poder e longevidade. Descobriu na morte de pessoas, inocentes ou não, um deleite, matar o fazia se sentir uma espécie de deus. E como humano, habitando corpos de pessoas ricas e poderosas, cujo passatempo predileto era matar e explorar pobres, as vidas dele eram sempre plenas e prazerosas.
Contudo, talvez não por muito tempo, a relíquia que havia lhe dado poder há milênios, depois que ele trocou de corpo e se esqueceu dela, tinha sido vendida para um rico mercador na cidade de [5]Pompeia, e quando a cidade foi destruída e soterrada, somente no século XXI o artefato foi redescoberto por uma arqueóloga inglesa, doutora Sarah Smith. Ela lecionava numa universidade local e trabalhava para uma fundação que realizava escavações arqueológicas em Pompéia. Ao ser recuperado, o objeto de metal foi catalogado e fotografado no mesmo dia pela equipe da doutora, e entregue a ela, para pesquisas na universidade.
O que ninguém de sua equipe sabia, e nem ela mesma, é que tanto Lucínius como Sarah tinham uma coisa em comum, ambos eram imortais trocando de corpos. Ela de forma inconsciente, e sem guardar a memória de seu hospedeiro ou a lembrança das almas que usava e se alimentava, enquanto ele tinha noção de tudo. Ao tocar novamente o artefato, ela se lembra de tudo que viveu, bem como da lembrança de todas as demais almas. Mas diferente de Lucínius, ela não conheceu o artefato aqui na terra, ao contrario, o objeto era de uma civilização milhares de anos mais avançada que a humana. Seu povo havia evoluído de tal forma, que deixaram seus corpos humanoides e se entregaram a uma forma de vida completamente integrada à tecnologia. No final os corpos deles se mantiveram estáticos e congelados em câmaras, e as almas que animavam aqueles seres de carne e osso, agora não existiam mais.
Contudo, poucos daquela espécie sobreviveram, e os que restaram descobriram que a saída para recriar seu povo era extrair almas de planetas onde existissem civilizações humanoides, mesmo que ainda em estagio bárbaro, ou em desenvolvimento, como estava ocorrendo na Terra. O aparelho recolhia os espíritos e prendia os mesmos ao hospedeiro central, que por sua vez eram presos ao aparelho. E quando este retornasse a seu planeta de origem, com a essência física da cientista, com as almas humanoides reeducadas e completamente cientes que eram daquele mundo, a raça dela poderia ser novamente uma joia no universo.
Esse dia estava próximo porque ela carregava milhares de almas, mas ao contrario do que Lucínius pensava, não habitavam o mesmo corpo com ele, e sim o aparelho, mas como ele tinha acesso a memoria delas, pensou que era da forma anterior. Ela estava na terra há 20 mil anos, ao passo que o humano que tinha adquirido a tecnologia de forma inconsciente, ou genética – examinaria isso ao retornar a seu mundo - vivia há 2500 anos, mas com a fusão das duas mentes, e a união física de ambos, poderiam acionar o dispositivo e retornarem a seu mundo porque já possuíam almas em bom numero para o projeto, além do mais, poderiam retornar a terra e coletar mais, se necessário...
De posse de todo conhecimento de seu mundo, ela ordena mentalmente a Lucínius que venha pra a Itália e encontre-a em sua residência, próximo à Nápoles. Ele pega um de seus jatos particulares e parte ao encontro dela. Ao chegar no apartamento e tocá-la, apertando-lhe a mão, ele sente uma aura de poder e energia tão grande, que simplesmente não pode ser medido e entendido por nenhuma tecnologia terráquea, somente séculos após teriam tecnologia para isso. Tocam em conjunto o aparelho e o portal para o mundo que se abre. Mas assim que retornam, percebem que os poucos sobreviventes de seu mundo, também se integraram a evolução tecnológica. Todos os corpos que se mantinham nas maquinas foram destruídos em camarás de extermino à lazer, algo séculos a frente das câmaras crematórias movidas a gás que eram usadas na terra para destruir os corpos dos mortos.
Por milênios ela lutou por refazer seu mundo, e agora, ele não mais existia. Embora Lucínius não fosse daquele mundo, o conhecimento genético dele esta em sua mente. Assim como o portal para ir à terra ou retornar, e talvez fosse esse o novo sentido que ele e ela deveriam buscar para suas vidas imortais, desenvolver a raça humana nós séculos que viria, e aos poucos levando tecnologia deste planeta para o dele. Conhecendo o que havia ocorrido aqui, poderiam evitar que o mesmo se desse também na Terra. O pensamento de ambos era integrado, e ela concorda e inicia o retorno, contudo, não é isso que ocorre, os corpos de ambos ficam num limbo entre o espaço-tempo, ela presa em seu mundo e ele no dele, sem jamais chegarem ao mundo real.
De alguma forma o material químico que saiu do Vesúvio séculos atrás, antes da erupção, danificou o aparelho, por isso Darsínios pode fazer parte daquele experimento. E ao retornar ao mundo dela, exauriu as ultimas medidas de proteção e segurança do dispositivo tecnológico. Agora eles estavam num limbo temporal, não eram nem de carne e nem energia, eram fantasmas quânticos pela eternidade... Ainda assim eles estavam realmente unidos, juntamente com as milhares de almas que trouxeram do planeta; contudo, jamais se tocariam ou se sentiriam novamente, só poderiam dividir seus pensamentos a distancia, bem como a vontade de serem novamente seres vivos, o que jamais serão enquanto este universo não se destruir daqui a trilhões de anos...
[1] Até o século III, os cidadãos Romanos podiam tornar-se escravos por dívidas. Até a sua abolição, este tipo de escravização provocava o descontentamento da plebe. O escravo romano é era considerado como um membro da família, contudo, era nada mais que um objeto de seu dono.
[2] As Guerras Púnicas envolveram Roma, que já dominava toda a Península Itálica, e a cidade de Cartago, cidade de origem fenícia no Norte da África, que controlava o comércio no Mediterrâneo ocidental. Roma interessava-se pelo controle sobre a Sicília, grande produtora de trigo; terras da península Ibérica, produtora de prata e pelo controle do comércio que estava nas mãos dos cartagineses. Cartago pretendia aumentar seu raio de dominação econômica, desalojando os comerciantes gregos do Mediterrâneo.
[3] Escola para a formação de gladiadores, geralmente pertenciam a um romano menos nobre, ou a um grande nobre que deixava os abaixo na escala social cuidarem de seus interesses. No império romano, os gladiadores eram símbolos de virilidade e poder. Seus serviços eram requisitados em festas e orgias...
[4] O hedonismo é uma teoria ou doutrina filosófico-moral que afirma ser o prazer o supremo bem da vida humana. O significado do termo em linguagem comum, bastante diverso do significado original, surgiu no iluminismo e designa uma atitude de vida voltada para a busca egoísta de prazeres momentâneos.
[5] Pompeia foi outrora uma cidade do Império Romano situada a 22 km da cidade de Nápoles, na Itália, no território do atual município de Pompeia. A antiga cidade foi destruída durante uma grande erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C., que provocou uma intensa chuva de cinzas que sepultou completamente a cidade. Ela se manteve oculta por 1600 anos, até ser reencontrada por acaso em 1748. Cinzas e lama protegeram as construções e objetos dos efeitos do tempo, moldando também os corpos das vítimas, o que fez com que fossem encontradas do modo exato como foram atingidas pela erupção. Desde então, as escavações proporcionaram um sítio arqueológico extraordinário, que possibilita uma visão detalhada na vida de uma cidade dos tempos da Roma Antiga.