POR DAVID DA COSTA COELHO
Por milênios duas almas estiveram conectadas, uma hora como mãe e filha, outras como avó e neta, outra como irmãs, e assim ao longo dos milênios, elas se conheciam e se conectavam a cada reencarnação, mas quis o destino que numa vida anterior elas seguissem vidas em continentes diferentes, e sem a consciência uma da outra, elas se entregaram a realidade de suas vidas, mas precisando uma da outra como jamais foi necessário em todas suas vidas anteriores...
Eu fui à primeira mulher a ter o direito de liderar uma missão espacial de colonização sem saber se voltaríamos por anos. Estávamos em 2135 e a humanidade enviaria uma missão de colonização para marte, éramos como os pioneiros da colonização da América séculos atrás.
Anos antes já tínhamos enviado parte da infraestrutura e pequenas equipes para o espaço, com elas montamos uma estação espacial na metade da orbita entre os dois planetas e mantínhamos equipes construindo a estação, e depois para a terra; sendo substituídos após pela próxima equipe, até antes devido aos novos motores de [1]propulsão iônica avançados que o conglomerado global estava projetando e sempre evoluíam. Graças a eles, poderíamos fazer a ida a marte na metade do tempo previsto quando ele estivesse adaptado as nossas necessidades.
Eu era a mulher mais famosa do planeta e tinha um bilhão de seguidores em minhas várias paginas no VirtuaMind, a tecnologia que comprimiu toda tecnologia virtual em chips implantados em nossas mentes. Com ela tudo era melhor, inclusive a divisão do conhecimento e a interação virtual com a família e a quem amávamos.
Deixar tudo que eu tinha na Terra não foi dizer bem uma escolha, mas um momento de rasgar minha alma. Mas qual mulher Do planeta estava destinada a escrever seu nome para sempre na história da colonização espacial? Casar, ser mãe e ter filhos, isso qualquer uma de nós poderia continuar fazendo, mas ir a outro planeta e dar um novo sentido a espécie humana ia muito além de minhas vaidades mortais femininas...
Mas nos casulos de anos antes foi também a joia da coroa da colonização espacial, pois marte, por tudo que representava para o futuro da terra, foi escolhido para algo que era apenas ficção cientifica do século XX e XXI, a [2]terraformação. Como o planeta tinha uma gravidade menor que a da terra devido ser menor e não ter campo eletromagnético, mesmo que o tornássemos habitável em alguns séculos, ainda assim só poderíamos viver em cidades subterrâneas. Mas um cientista brilhante, na metade do século XXI havia criado uma forma de fazer de marte um lugar melhor, e para isso ele só precisava engordar.
Na orbita entre Júpiter e Marte havia um cinturão de asteroides que deveria ter sido um planeta, mas que se chocou com um corpo idêntico e se fragmentou quando o sistema solar estava em formação, bilhões de anos antes. O cinturão era rico em minerais raros e água transformada em gelo, provavelmente da antiga atmosfera marciana e do outro planeta. E se toda aquela massa fosse levada ao planeta, ele seria idêntico a terra em dimensões e pressão. O resto seria terraformação, reaquecendo o núcleo do planeta com ondas quânticas – algo semelhante ao que fornos micro-ondas fazem pela comida - para gerar um campo magnético, e aquecimento global para dar uma temperatura planetária adequada para ser nosso segundo lar no cosmo.
Durante anos eles montaram a tecnologia conhecida hoje como arrasto quântico, semelhante a um raio trator. Esse raio usava marte como uma ancora e atraia pequenos meteoritos numa escala de chuva e o direcionava ao planeta em velocidade imensa, bombardeando-o por anos, em seus polos, onde a gravidade era maior. A nova geração da tecnologia os permitiu lançar asteroides ricos em materiais necessários às novas tecnologias, em seguida foram aumentando os alvos para corpos imensos, mas ricos em água.
Desta forma o planeta sofreu um bombardeio intenso durante décadas, e sua gravidade também acompanhou esse crescimento exponencial. Os dois corpos que eram luas de marte, Fobos e Deimos, também foram atirados no planeta, afinal, um dia eles cairiam no planeta mesmo após seu aumento de gravidade.
Trinta anos antes de iniciarmos a colonização, foi decidido que os asteroides maiores deveriam ser intensificados rumo ao planeta, com esses corpos caídos, haveria muito calor e poeira na atmosfera, mas servia a um propósito, o de criar uma camada de terra e de minerais já processados pelo calor da reentrada. Os corpos gigantes também traziam em seu bojo, devido sua gravidade, corpos menores, o que auxiliou em muito nossa tarefa...
Com tanto calor proveniente das quedas, e dos cometas com água, o gelo dos polos iniciou o derretimento. O que auxiliou na precipitação pluvial e na criação de uma atmosfera devido aos raios nas tempestades, quebrando a ligação química da água e liberando ozônio. Com a chuva e o vapor na atmosfera, o planeta poderia enfim ganhar vida. O bombardeio ainda continuaria por séculos, mas apenas corpos menores seriam jogados nos polos, enquanto colonizaríamos o equador do planeta, local de fácil acesso ao espaço devido a menor gravidade e distancia das quedas.
Depois de meses no espaço, finalmente nosso casulo aterrissou no planeta vermelho. Era bom estar de novo numa gravidade planetária e senti-la me puxando. Apesar dos nossos esforços, a temperatura em marte ainda precisava esquentar muito, e a segunda parte da missão era aquecer o planeta e liberar água. Havíamos pousado numa cratera gigante de um asteroide que jogamos ali há uns 30 anos. O solo era perfeitamente vitrificado, e perfeito para a nossa base. E foi lá que minha vida realmente mudou, porque nos primeiros dias era só trabalho intenso e nada de diversão, e nos polos do planeta, uma chuva constante e eterna, mas linda ao riscar à noite...
Por seis meses essa foi minha rotina, mas um dado dia em que eu estava realmente cansada de meu fardo de líder, e só queria descansar, dormir por semanas sem que ninguém tivesse que vir a mim, e como num desejo concedido por um gênio de uma lâmpada mágica, descobri que não estava mais em marte, e sim na Inglaterra vitoriana...
Eu me chamava Margareth, duquesa e herdeira da casa dos Lancaster, uma família antiga e poderosa da nobreza britânica, e casada com um conde inglês. Minha mente aceitou aquela realidade por semanas porque achei que estava sonhando enquanto eu não despertei para minha essência de séculos no futuro; mas e a partir de então eu lutava para não aceitar aquela vida porque eu sabia que devia ser muito mais que sonho e sim que eu estava realmente ali, de corpo e alma, e espelhos não mentem...
Eu sabia quem era, e de tudo que poderia fazer neste período da história humana se quisesse começar a reinventar a tecnologia com tudo que eu sabia, afinal eu era graduada em física, química, engenharia, mecânica e mais outras coisinhas. Mas a despeito disso havia uma parte de mim que gostava daquela vida típica de nobre inglesa, das festas, caçadas a raposa, jogos, encontro de damas da corte nas festas da rainha, idas a noivados e casamentos, além disso, eu experimentava algo que nenhuma pessoa de meu tempo possuía mais, a privacidade da própria vida, e também ser apenas eu, e não a pessoa que era seguida por bilhões...
Embora fosse uma vida de opulência, normal a classe social que minha mente vivia; algo em mim mudou após os meses de satisfação porque para ser quem eu era no futuro foi porque nasci para ser maior que qualquer mulher que já tenha feito história, e aquilo me entediava porque eu era uma mulher com sangue nas veias, precisava liberar uma fera que dormia dentro de mim, e que não era daquela época.
A mulher que eu nesse tempo tinha casado virgem aos 16 anos, na noite de núpcias, e parte quântica do meu eu, antes mesmo de assumir o corpo e esta vida, com meu eu do futuro foi quem devorou meu marido e conde, com quase o dobro de sua idade e experiência sexual advinda de varias mulheres que ele usou e abusou ao longo de décadas, nas guerras que combateu como oficial do império britânico. Aquilo o assustou vindo de uma virgem, mas ele foi meu eternamente desde então...
Mas com toda aquela vida agendada e tediosa da nobreza rica e abastada, eu estava sofrendo de um tédio, duas partes de mim insatisfeitas. Meu eu antigo precisava de fogo em suas veias, usar seu poder de nobre, deixar claro as classes inferiores quem era, mas como?
Meu Marido, agora com quarenta anos, estava exercendo um cargo burocrático na câmara dos lordes, e o titulo de coronel do exercito britânico, apesar de pomposo, não tinha muita serventia em Londres, a não ser para contar histórias de suas aventuras heroicas contra os inimigos da rainha. Era preciso algo novo pra sacudir a normalidade e sair de Londres, para ver o mundo, conhecer como era mandar e matar pessoas que ofendiam sua amada rainha ao se revoltar contra suas ordens...
Como num desejo realizado, a minha vida boa na Inglaterra mudou dramaticamente porque sabíamos no futuro que a paz do império britânico foi sim uma realidade, mas construída a ferro, fogo e sangue dos povos que eles devastaram e massacraram para manter suas riquezas e privilégios...
E como a sorte sempre favorece aos nobres, ricos e poderosos, em 1877 a Índia foi incorporada ao Império Britânico, e no mesmo ano a rainha Vitória recebeu o título de Imperatriz da Índia, cabendo à coroa a administração direta do gigantesco território indiano, de onde provinha um mundo de riquezas para o império, principalmente o algodão...
E esse era o motivo que a minha vida daria uma grande reviravolta porque meu esposo foi escolhido, assim como outros nobres que ele comandaria, para irem à Índia e administrar as insatisfações da população local, que ao invés de plantar arroz para alimentar a população, deveriam agora plantar algodão, pois esse produto era essencial à revolução industrial inglesa e trazia uma quantidade de riquezas gigantescas ao império.
O fato de milhões de indianos não poderem comer algodão, e nem terem dinheiro para comprar arroz de seu próprio país, ou importar de outros, bem, isso era irrelevante, afinal, eles eram inferiores, pois esta era a teoria cientifica que varria a Europa vitoriana na época, e o darwinismo social, a biometria e outras teorias racistas e xenofóbicas que davam a explicação do porque eles foram conquistados porque deveriam servir aos conquistadores.
A missão de meu esposo, lorde Clayton, consistia em coordenar exatamente isso, manter o constante fluxo de algodão ao império britânico, não importando as consequências. E para tornar as coisas mais claras quanto ao pensamento da época, ele era um defensor natural de que os europeus eram superiores a todas as raças do mundo. E embora tenha sido uma grande honra ter recebido da rainha em pessoa a sua missão patriótica e de grande prestigio, irritando outros nobres invejosos que gostariam do cargo, ele não estava tão feliz, pois em seu intimo, pensava em ficar mais dois anos na Inglaterra e ter um filho, pois sua mulher fogosa estava na idade certa para isso. Contudo, nada o impedia de ter um na Índia e mandar a esposa gravida para casa e ter o filho aqui, aos cuidados de sua família...
Como havia duas de mim em apenas um corpo, isso me deu o dom de captar os pensamentos de meu marido, e saber das suas intenções de me fazer uma parideira deportada para casa não me agradou nem um pouco, mas como eu poderia fazer para retomar minha vida fora dessa prisão corporal e mental?
Mas a índia foi para mim uma grata surpresa, pois além das peculiaridades da administração britânica, tínhamos uma vida social intensa, com festas e banquetes suntuosos, enquanto fora de nossos muros milhões morriam de fome. Nesta época essa política de plantar algodão e esquecer do arroz fez com que mais de 30 milhões de indianos morressem, o que foi ótimo para a coroa porque pessoas com fome e morrendo aos milhões não se revoltam...
E como previsto, aos 26 eu fiquei grávida, mas não contei ao meu marido, antes queria conhecer um pouco daquela cultura que na minha época já não existia. Por isso fui aos templos sagrados, cercada de protetores porque meu marido era o homem que mandava naquele continente. Adorava os vários tipos de comidas e sabores, a Índia sempre me fascinou em minha época, e agora eu sábia a razão disso...
Foi num desses passeios que encontrei uma mulher sagrada, seus olhos eram profundos, de um azul intenso, e assim que ela tocou minhas mãos para ler meu futuro, eles invadiram meu corpo e me fizeram voltar à Marte, e no segundo seguinte de volta a ela, mas havia algo mais, a alma dela seguiu junto comigo e dividiu comigo tudo que eu era e sabia...
Ela riu para mim e disse que minha viagem para casa seria longa, muito longa, e que eu seria levada pela minha filha, e das filhas dela, e que quando voltasse para casa, que um dia viesse novamente a este lugar porque ela estária aqui me esperando...
De meu salto no tempo, o retorno à minha época, e de novo retornar ao passado, deixei a velha mística com um estranho formigamento em minhas costas e a certeza de que deveria deixar a Índia. Ao chegar ao palácio contei a meu marido que estava gravidade de dois meses e que achava que seria uma menina, e em homenagem à rainha, nós a chamaríamos de Vitória. Ele me beijou e me amou com fome de vida e me disse que eu era a luz da vida dele, mas que a Inglaterra era o melhor lugar para mim agora, onde seria protegida e viveria minha gravidez aos cuidados da família e dos médicos...
O retorno foi outra aventura porque pegamos chuvas e tempestades que quase afundaram meu navio, mas finalmente estava de volta à Londres e a velha vida monótona de festas e mais festas, mas de caçadas eu estava excluída. Os meses se seguiram e finalmente minha filha nasceu. Meu marido havia deixado um segundo em comando e veio apresentar um relatório à rainha e ver nossa pequena e nobre Vitória...
Os anos seguiram e ela cresceu muito linda, mas uma estranha doença me atingiu e eu fiquei de cama com ela na adolescência, os médicos não sabiam o que era, mas eu tinha certeza que a minha morte se aproximava. Meu marido e ela se juntaram no quarto enquanto eu dava meus últimos suspiros, e ao olhar para ela, segundos antes de morrer, ou uma eternidade para quem esta vivo; senti minha alma sair de meu corpo e se depositar em Vitória.
Os anos passaram, meu marido jamais se casou novamente e minha filha assumiu seu papel de nobre e se casou com outro nobre. Teve três filhos homens e uma menina, e quando a filha completou 16 anos, o mesmo destino se apoderou da família...
Por três séculos minha alma viveu em minhas descendentes, e foi em marte que escapei da fuga de mim mesma para que eu retornasse à minha vida e corpo. Agora eu me lembrava da morte de minha mãe e de tudo que me levou a estudar e me graduar em várias coisas para ser a mulher idolatrada de minha época, quando meu espirito retornou de volta à minha realidade, e pude ver com lágrimas nos olhos as lembranças de todas as minhas vidas e mortes, como lágrimas fogo de cada meteorito que caia no planeta...
Nada contei de minha louca experiência aos meus seguidores ou ao centro de comando do projeto. Retornei para casa como heroína de um planeta onde eu fazia cara e bocas, mas por dentro, por ter vivido e morrido tantas vezes, eu estava vazia. E agora mais do que nunca eu temia ter filhos, ou melhor, filhas porque sabia meu destino e o delas...
Meses após meu regresso, parti para a Índia, para um lugar que vi apenas séculos atrás, mas vívido em minha mente. Para minha surpresa, aquela mulher estava lá, igual e intocada pelo tempo, e em seu olhar ela já sabia tudo que varria minha mente em perguntas, e eu ainda assim lhe perguntei...
- Foi uma longa espera irmã, a imortalidade realmente cobra preços estranhos. Eu condenada a viver neste corpo pela eternidade, e você a trocar de alma e lugar, ainda que não queira.
Ao ouvir as palavras da anciã tudo em mim retornou, eu não fui só uma nobre inglesa, fui milhares de outras coisas, pois vivia há mais de cem mil anos. Eu e minha irmã éramos imortais, ela de corpo e alma, e eu tendo uma alma imortal presa a este plano, mas que necessitava de um corpo feminino...
Quando eu morria aqui sem ter tido uma filha para passar minha essência, meu espirito pulava aleatoriamente para alguma mulher jovem em qualquer lugar do planeta e eu perdia o contato com minha irmã imortal. Ficávamos distantes até algum evento quântico nos permitisse o reencontro e continuar nossa sina. Nossa ligação é tão forte que até reencarnar em alguém do passado para esse reencontro é comum porque o destino prega peças em suas filhas, e nós somos dele...
Ao retornar para casa eu confirmei meu destino, tomei um remédio que me deixou estéril. Eu era imortal, mas nos meus longos anos que restavam eu iria viver o que eu era, e enquanto houvesse tecnologia para me manter jovem e saudável neste corpo, nele eu estaria. Quanto a minha irmã, ela leu tudo que eu faria ao sair de perto dela, e de novo ela sorriu, pois como irmã mais velha, saberia que não importava o corpo e a época, um dia nos reencontraríamos...
Ficar velho é aceitar as coisas que nos massacra e não desejamos para simplesmente continuarmos vivos e envelhecendo, e isso é vida?
[1] Propulsor de Íons é um tipo de propulsão espacial, que utiliza feixes de luz à base de energia elétrica. Especificamente, esta propulsão de energia deve ser de base nuclear, pois a força de impulsão é muito forte. A introdução desse método só pode ser feita com um jato de energia elétrica, que dá uma força de repulsão maior. Portanto, esse método se baseia num reator nuclear onde toda a energia nuclear será expelida intensamente.
[2] Terraformação é a denominação dada ao processo, até agora hipotético, de modificar a atmosfera e temperatura de um corpo celeste sólido (como um planeta ou um satélite natural) até deixá-lo em condições adequadas para suportar um ecossistema com seres vivos da Terra.