KATANA E CUTELARIA, A ARTE DE FAZER ESPADAS...
POR DAVID DA COSTA COELHO
A história da humanidade jamais estaria completa sem a maior das invenções humanas, o fogo, ele moldou nossa evolução e nos permitiu dominar todo o planeta, mas depois da cerâmica, a invenção dos metais foi a 3ª maior descoberta porque nos permitiu sermos superiores a todos os predadores que ainda ousava nos enfrentar, e quando não havia mais predadores do reino animal só restou ao homem seu maior predador, o próprio homem, e para se defender, além de lanças e arcos e flechas, ele inventou as espadas...
As espadas iniciais eram feitas de madeiras e pedras cortantes coladas com resina de madeira e carvão, mas o cobre passa a ser usado para fazer laminas e espadas, no entanto, o cobre é um metal macio, mas com a invenção do [1]Bronze, elas ganharam o poder de perfurar e cortar que só os metais resistentes possuem. Ao longo de milênios o Bronze foi o metal mais utilizado pelo homem para confeccionar armas, mas como tudo na vida, um dia um ferreiro inovou e fez espadas de ferro. Elas eram melhores e mais fortes que as de bronze, e em batalhas contra espadas de ferro não havia como competir...
Ao longo dos milênios as espadas de ferro seguiam o mesmo processo e modelo, o metal era derretido nos fornos com formato de chaminé, depois que obtinham o metal, ele era derretido em fornos menores em um molde para liquido, e em seguida jogados em uma fôrma que os moldava com cortes dos dois lados e a parte do meio grossa; mas como havia muitas impurezas, as espadas não eram tão grandes e fortes, e muitas vezes se quebravam numa batalha...
Mas como sempre, a inventividade humana achou a solução. Os ferreiros descobriram que bater no metal enquanto ele estava quente fazia com que ele tivesse menos impureza, desta forma eles passaram não mais a despejar ferro derretido numa fôrma e sim moldar o ferro quente através de marteladas numa bigorna. Fazer uma espada agora demorava muito mais tempo, gastava-se muito carvão natural ou mineral, mas o resultado era uma espada maior e mais forte, que resistia melhor aos conflitos e aos usos diversos; para o aço faltava pouco agora...
Os principais impérios da terra começaram a utilizar espadas forjadas, e nos primeiros séculos da era cristã os islâmicos, chineses, mongóis, europeus, vikings tinham espadas resistentes às batalhas e eram ótimas armas de guerra, claro que com gradações entre elas devido à técnica de cutelaria...
Graças ao uso da bigorna, das marteladas e da engenhosidade dos ferreiros as espadas agora eram maiores e flexíveis, um grande exemplo são as espadas chinesas desta época.
Mas algo realmente novo e poderoso estava para surgir no Japão. Um lugar isolado, um aglomerado de ilhas perto do que hoje é a Coreia do sul e do Norte, e da própria China, lembrando que esse país também teve imigrantes chineses milênios antes, e que levaram para lá sua escrita, cultura e tecnologia de fazer espadas. Desta forma surgiram neste arquipélago espadas grandes e grossas feitas de ferro devido a quantidade de impurezas do minério que havia no Japão, e sua resistência deixava muito a desejar porque as espadas chinesas eram melhores e mais fortes e finas ...
Para resolver isso os ferreiros japoneses passaram a derreter o metal em uma caloria muito mais elevada até obter uma liga com baixíssima impureza chamado tamahagane, desta forma a quantidade de carbono na espada era menor, para a katana faltava pouco. As inovações seguiram porque o Japão teve inúmeros períodos de guerra civil e confronto contra outros povos, e espadas resistentes era uma questão de vida ou morte.
Os ferreiros japoneses começaram a fazer espadas de aço melhor e aprimorado, reaquecendo o metal com pouca impureza, batendo no metal quente e brilhante, com martelos pesados, jogando pequenas quantidades de água a cada batida, e em seguida jogando o aço na água até esfriar completamente, e voltava para a forja e se repetia o processo.
Depois a peça era quebrada em vários pedaços e separadas observando a parte interna do metal, se tivesse pouquíssimas impurezas, ela se chamava kawagane, e seria o gume da espada, a parte cortante, já a parte com mais impurezas seria a parte de traz da espada, o Shingane, onde absorveria os impactos nas lutas.
Esse pedaço de metal era unido e aquecido junto a uma barra de ferro e agora era de novo martelado e molhado até ser levado em brasa a água e resfriado rapidamente. Mas após esse processo a cada batida soltava uma casca, e para evitar isso, o metal era banhado em uma mistura de argila com cinzas e levado ao forno para reaquecimento. Na cutelaria moderna se usa [2]Borax para impedir essa descamação durante o processo de martelagem ou prensa...
O metal resfriado recebe mais pedaços com impureza na parte de cima, é enrolado com seda, joga-se na argila com cinzas, retira-se, e jogam-se cinzas de arroz na peça e retorna a forja. Ali ele superaquece e forma um único bloco, ele é retirado, leva marteladas rápidas e banhado incandescente em cinzas e retornas a forja rapidamente. Retira-se do fogo o bloco inteiro e ela começa a ser martelada pelos auxiliares do mestre...
Na cutelaria moderna esse processo se faz com a prensa hidráulica e com o martelo pneumático. E caso deseje estudar e montar uma cutelaria com pouca grana, e não puder ter os dois, a prensa hidráulica é a melhor opção e faz tudo que o martelo hidráulico não pode fazer.
Retomando, o processo de espancamento do aço e reaquecimento continua até que ele é dividido em duas partes, com a mais dura ficando para baixo, e a mais mole na parte acima, no que serão as costas da katana. Novamente banhada em argila com cinza e retorna ao fogo, ela é alongada no processo de batida e agora cortada no sentido longitudinal. O objetivo desse corta e abre e estica é fazer com que o metal vire uma espécie de bolo em camadas de cores diferentes, e à medida que se refaz o processo, se tem uma única peça com propriedades incríveis no campo da metalurgia da época, e após sua construção final se pode ver essas linhas no corpo da espada, mais um exemplo de genialidade e beleza...
Diferente das demais espadas de seu tempo, exceto a cimitarra Árabe e algumas espadas da Índia, a katana não tem corte nas duas extremidades opostas, como as espadas chinesas ou europeias, e sim afiadas exclusivamente na parte abaixo nos dois gumes...
Após esse processo, o metal é dividido e separado da peça de aço, levado a uma fôrma, ele é martelado até virar uma dobra longitudinal, a parte mais macia, e a parte mais dura – kumi-Awase - são encaixadas e marteladas até se fixarem e se tornarem o – Kobuse - ou seja, agora o corpo da espada está realmente pronto porque a parte que foi enrolada – Kawagane - será as costas da arma, e a parte reta encaixada o gume da espada será o Shingane. Com todas as partes prontas, entra em ação o – Sunobe - que é alongar o metal aquecendo e espancando até chegar ao formato da barra da qual se fará a espada...
Ela é aquecida e separada no seu formato final, sendo martelada e molhada a cada batida para dar a firmeza e estrutura do aço longitudinal que é o corpo da arma. A ponta é martelada e moldada para fazer o bico semicircular, e após verificar suas dimensões e espessura, ela é levada a forja novamente – hizukuri – ou seja, ela começa a ser moldada no gume externo para afinar a lateral acima, e abaixo, mas deixando uma linha central no meio da espada, o que lhe confere resistência e força. Espadas medievais europeias não eram capazes de perfurar em linha reta uma armadura de cavaleiro, mas uma Katana em linha reta penetrava a armadura, demonstrando a superioridade da tecnologia dessa espada única no mundo...
Com a espada já formatada, agora era a hora da grosa e da faca de corte dupla, a grosa era usada na parte das costas para dar o formato reto e quadrado, já à faca de corte era para desbastar o metal que será a parte cortante nas duas faces até atingir o ponto de ser afiada, a grosa dá o acabamento final no corte. Após esse processo, ela passa pela pedra de afiar, aonde vai se alinhando e mostrando sua faceta de corte único, e depois dessa laminação se percebe todas as camadas – hamon - que dão origem a essa espada. Ela é limpa e lixada até assumir sua coloração prateada...
Mas agora entra a mágica, embora árabes e indianos tenham feito espadas curvas, as deles eram curvadas no martelo e temperadas em seguida na água ou óleo, mas a Katana tinha outro processo porque até esse momento ela é reta. A técnica se chama Tsuchioki, uma mistura de argila com cinzas de carvão para dar o tratamento térmico que vai dobrá-la e dar o efeito de [3]Hamon...
Ela é feita com uma mistura mais escura e fina na parte cortante inteira da arma, e nas costas com argila mais clara e grossa, dando duas tonalidades e densidades, em seguida são feitos desenhos com argila em linhas diversas ao longo da espada, o que depois de prontos dá um formato de ondas, tipo ondas do mar pequenas vista de um barco, e cada mestre japonês trabalha seu padrão único.
Na cutelaria atual esse processo de têmpera, que pode ser total ou parcial é feito com uma espécie de cimento refratário que é colocado na lâmina que sofrerá o processo de aquecimento e resfriamento nas partes tratadas...
Ao ser levada ao fogo, essa argila vai permitir que a parte mais fina se aquecesse mais que a parte grossa, e quando for retirada em brasa e for colocada na água para a têmpera - endurecimento do metal - ela irá se resfriar rapidamente, mantendo a elasticidade e dureza, e a parte das costas com argila mais grossa e ainda quente puxara a parte mais fina porque lá esta mais quente, dando o formato curvo peculiar da Katana porque o metal dali foi desbastado e afinado e ao ser puxado, a curva surge...
Depois disso é polir a espada, afiar, lixar, fazer o furo na parte onde será o cabo e a guarda, e fazer o cabo que é de madeira, algumas têm temas escritos no corpo da espada, ou desenhos dentro do cabo.
O cabo de uma Katana é feito para segurar com duas mãos, e a guarda é geralmente arredondada com cortes nas pontas, semelhantes a uma rosa, ou arredondado, mas com cortes internos fazendo desenhos. Depois de encaixada na espada, a madeira do cabo é coberta com couro de arraia ou tubarão, e em seu entorno é feito um cordão em forma de X por todo o cabo para dar firmeza na hora de segurar. A capa também é feita de madeira e depois trabalhada e pintada com laka, uma tinta brilhante e oleosa.
Em relação a sua forma específica, ela tem um corte melhor porque é curva, e isso aumenta sua relação de corte, diferente de uma espada reta. A Katana não ganhou sua fama de uma hora para outra, e sim através de séculos de lutas no Japão feudal até meados do século XIX. A capacidade e inteligência dos ferreiros japoneses, criando técnicas nunca antes vistam, e segredos por séculos estão hoje acessíveis a quem desejar se inserir na cutelaria de espadas, facas e afins. Espadas é parte da história e alma da humanidade, e sempre terão utilidades, ainda que como obras de artes expostas em paredes de pessoas ricas, ou em museus, fazendas ou num simples apartamento ou casa...
A cutelaria hoje é uma arte que pode dar a uma pessoa que estude e se aplique ao tema um padrão de vida de sobrevivência, ou fama, havendo aqui no Brasil inúmeros exemplos de pessoas que fazem espadas por mil reais a cinquenta mil reais, ache seu espaço e boa sorte...
[1] O bronze é uma liga metálica, ou seja, uma mistura formada por dois ou mais elementos, sendo o principal deles um metal, formada pelos metais cobre e estanho.
[2] O bórax, também conhecido como Borato de sódio ou Tetraborato de sódio é um sal hidratado de sódio e ácido bórico. Na cutelaria é um dos produtos mais usados como fundente durante a soldagem na forja.
[3] Em cutelaria, Hamon (刃文?) (Do japonês, literalmente “desenho em lâmina”) é um efeito visual criado na lâmina pelo processo de endurecimento do aço. O Hamon é o contorno da zona endurecida (yakiba), que contém a aresta de corte (ha). Lâminas feitas desta forma são endurecidas diferencialmente, e ficam com uma aresta de corte mais dura do que a espinha. Esta diferença de dureza resulta da argila aplicada sobre a lâmina antes do processo de arrefecimento (têmpera). Durante o tratamento térmico, menos ou nenhuma argila permite que o aço resfrie mais rápido, tornando-se mais duro, porém mais frágil, enquanto mais argila permite que o resfriamento seja mais lento e, com isso, mantenha o aço mais flexível e menos duro.