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ONDULAÇÕES NO MAR DE DIRAC

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Ficheiro:Geoffrey Landis02.jpg
Autor: Geoffrey A. landis
A morte se avizinha como uma enorme vaga, deslizando em minha direção com lenta e inexorável majestade. Tento fugir, mesmo sabendo que é inútil. Parto, e minhas ondulações divergem para o infinito, como ondas apagando as pegadas de viajantes esquecidos.
No dia em que primeiro testamos minha [1]máquina, tomamos muito cuidado para evitar qualquer paradoxo. Fizemos uma cruz de fita isolante no chão de concreto de um laboratório sem janelas, colocamos um relógio despertador nessa marca e trancamos a porta. Uma hora depois retornamos, retiramos o relógio e colocamos a máquina experimental na sala com uma câmara super-8, apoiada nas bobinas. Apontei a câmara para a marca, e um dos meus alunos de pós-graduação programou a máquina para enviar a câmara de volta meia hora, permanecer no passado por cinco minutos e depois retornar. Ela partiu e retornou em um piscar de olhos. Quando revelamos o filme, a hora no [2]relógio era meia hora antes de enviarmos a câmara. Havíamos conseguido abrir a porta para o passado. Celebramos com café e champanha.
Agora que sei muito mais sobre o [3]tempo, compreendo nosso erro. Não havíamos pensado em colocar uma câmara na sala com o relógio para fotografar a máquina quando ela chegasse do futuro. Mas o que era óbvio para mim agora não era óbvio então. Chego, e as ondulações convergem para o instante agora da vastidão do mar infinito. Para São Francisco, 8 de junho de 1965. Uma brisa quente acaricia a grama cheia de dentes-de-leão, enquanto nuvens brancas e fofas compõem formas estranhas e maravilhosas para nosso entretenimento. Mesmo assim, muito poucas pessoas param para apreciar. Elas correm para cá e para lá, com ar preocupado, acreditando que se parecerem bastante ocupadas, acabarão ficando importantes.
— Eles têm tanta pressa! — observo. Por que não podem parar um pouco, relaxar, curtir o dia?
— Estão presos na ilusão do tempo — responde o Dançarino.
Ele está deitado de costas, soprando uma bolha de sabão, os longos cabelos castanhos tocando-lhe os ombros, numa época em que qualquer cabelo abaixo da orelha seria considerado comprido. Um sopro de brisa carrega a bolha colina abaixo até o vaivém de pedestres. Todos, sem exceção, a ignoram.
— Estão presos à crença de que o que fazem é importante para algum objetivo futuro.
A bolha estoura em uma maleta e o Dançarino sopra outra.
— Você e eu, nós sabemos que isso é uma ilusão. Não existe passado, não existe futuro, apenas o agora, eterno.
Ele estava certo, mais certo do que jamais poderia imaginar. Antigamente, eu também me preocupava e me achava importante. Antigamente, eu era brilhante e ambicioso. Tinha vinte e oito anos e havia feito a maior descoberta do mundo...
Do meu esconderijo eu o vi sair do elevador de serviço. Era magro, quase esquelético, um homem nervoso de cabelos louros e oleosos, que usava uma camiseta branca sem mangas. Olhou para os dois lados do saguão, mas não me viu escondido no depósito de material de limpeza. Estava carregando uma lata de dez litros de gasolina debaixo de cada braço e mais outras duas, uma em cada mão. Colocou três delas no chão e virou a última de cabeça para baixo; depois, atravessou o saguão, espalhando um longo rastro de gasolina. Seu rosto não tinha expressão. Quando começou a esvaziar a segunda lata, achei que já era o bastante. Saí do meu esconderijo, dei-lhe uma pancada na cabeça com uma chave inglesa e chamei a segurança do hotel. Depois, voltei ao depósito e deixei as ondulações do tempo convergirem.
Cheguei a um quarto em chamas, que ardiam bem perto de mim, o calor quase insuportável. Tentei respirar (um grande erro) e apressadamente apertei algumas teclas. Uma vez, tentei retroceder vários milhões de anos, até o Cretáceo, para ver os dinossauros. Todos os livros ilustrados sobre o assunto mostram paisagens cheias de dinossauros. Tive que passar três dias vagando por um pântano (com meu terno novo de tweed) para conseguir, se bem que só de relance, dar uma olhada em um dinossauro que não era maior que um cão bassé. O danadinho (um terópode qualquer, não sei exatamente) fugiu rapidamente ao pressentir minha presença. Que decepção!
Meu professor de Matemática Transfinita costumava contar histórias sobre um hotel com um número infinito de quartos. Certo dia todos os quartos estão cheios e chega mais um hóspede. "Não tem problema", diz o gerente do hotel. Ele muda o hóspede do quarto um para o dois, do dois para o três e assim por diante. Pronto! Um quarto vago.
Pouco depois, chega um número infinito de hóspedes. "Não tem problema", repete o inabalável gerente. Muda o hóspede do quarto um para o dois, o do dois para o quatro, o do três para o seis e pronto! Um número infinito de quartos vagos. É exatamente de acordo com esse princípio que funciona minha máquina do tempo.
Mais uma vez retorno a 1965, o ponto fixo, o atrator estranho de minha trajetória caótica. Em anos de peregrinação conheci uma infinidade de pessoas, mas Daniel Ranien — o Dançarino — foi o único com a cabeça no lugar. Tinha um sorriso fácil e gostoso, uma velha guitarra de segunda mão e uma sabedoria que levei cem vidas para igualar. Conheci-o em bons e maus momentos, em dias de verão com um céu azul que, seríamos capazes de jurar, durariam mil anos, em dias de em que a neve se acumulava em grandes montes. Em tempos mais felizes, colocamos rosas em canos de rifles, nos deitamos nas ruas da cidade no meio de tumultos, e não nos machucamos. Eu estava com ele quando morreu, uma, duas, cem vezes.
O Dançarino morreu em 8 de fevereiro de 1969, depois de um mês de reinado de Richard, o Embusteiro, e seu bobo da corte Spiro, um ano antes de Kent State, Altamont e a guerra secreta no Camboja estrangularem lentamente o verão de sonhos. Morreu, e não havia — não há — nada que eu pudesse — que possa — fazer. A última vez que morreu, arrastei-o a um hospital, onde gritei e discuti até convencê-los a admiti-lo para exames, embora não parecesse ter nada de errado. Com o auxílio de radiografias, arteriogramas e contrastes radioativos, descobriram afinal o aneurisma incipiente que tinha no cérebro. Eles o anestesiaram, rasparam seus belos e longos cabelos castanhos e o operaram, removendo o capilar afetado e costurando as pontas com destreza. Quando a anestesia passou, fiquei sentado ao lado dele no quarto do hospital, segurando-lhe a mão. Seus olhos estavam com olheiras enormes. Agarrou minha mão e ficou olhando, quieto, para o vazio. Quando terminou a hora das visitas, não deixei que me pusessem para fora do quarto. Ele não disse mais nada. Pouco antes do amanhecer, quando o dia já estava clareando, suspirou baixinho e morreu. Não havia absolutamente nada que eu pudesse fazer.
As viagens no tempo estão sujeitas a duas restrições: a energia deve ser conservada e a causalidade, respeitada. A energia necessária para aparecer no passado é apenas tomada emprestada do mar de Dirac; como as ondulações desse mar se propagam no sentido negativo do eixo dos "t", o transporte só pode ser feito para o passado. A energia é conservada no presente, contanto que o objeto transportado retorne no mesmo instante em que partiu. Para que a causalidade seja respeitada, nada que o objeto transportado fizer no passado pode afetar o presente. Por exemplo: que aconteceria se você viajasse ao passado e matasse seu pai? Quem inventaria a máquina do tempo?
Uma vez, tentei suicidar-me assassinando meu pai antes que conhecesse minha mãe, vinte e três anos antes de meu nascimento. Nada mudou, é claro, e mesmo enquanto eu estava fazendo isso sabia que nada iria mudar. Mas a gente tem que tentar assim mesmo. Se não tentar, como vai ter certeza?
Na vez seguinte, experimentamos mandar um rato para o passado. Ele viajou no mar de Dirac e voltou sem problemas. Depois usamos um rato treinado, que havíamos pedido emprestado ao laboratório de psicologia sem explicar nossos motivos. Antes da pequena viagem, tinha sido ensinado a percorrer um labirinto para pegar um pedaço de bacon. Depois da experiência, chegou ao final do labirinto com a mesma facilidade.
Ainda precisávamos tentar com um ser humano. Ofereci-me como voluntário e não permiti que ninguém me dissuadisse. Experimentando em mim mesmo, podia contornar os regulamentos da Universidade a respeito de cobaias humanas.
O mergulho no mar de energia negativa não me causou nenhuma impressão especial. Em um momento, estava no centro do anel de bobinas de Renselz, observado por um técnico e meus dois alunos de pós-graduação; no momento seguinte, estava sozinho e o relógio havia recuado exatamente uma hora. Sozinho em uma sala trancada, com apenas uma câmara e um relógio por companhia, vivia naquele momento o ponto mais alto de minha vida.
O momento em que conheci o Dançarino foi o ponto mais baixo. Eu estava em Berkeley, em um bar chamado Trishia 's, embebedando-me devagar. Era o que mais fazia na ocasião, encurralado como me sentia entre a onipotência e o desespero. O ano era 1967. Frisco, naquela época (o auge da era dos hippies parecia apropriado, por alguma razão).
Havia uma garota sentada em uma mesa com um grupo da universidade. Fui até lá e me convidei a sentar. Contei-lhe que não existia, que nada no mundo existia, que tudo era criado pelo fato de que eu estava olhando e desapareceria no mar da irrealidade no momento em que eu parasse de olhar. Chamava-se Lisa, e tentou discutir comigo. Os amigos, entediados, foram embora. Pouco depois, Lisa percebeu que eu estava bêbado. Jogou uma nota na mesa e saiu para a noite nevoenta.
Eu a segui. Quando viu que eu a estava seguindo, segurou a bolsa com mais força e saiu correndo.
De repente, ele estava lá, debaixo de um poste de luz. Por um segundo, pensei que fosse uma garota. Tinha olhos azuis e cabelos castanhos que chegavam até os ombros. Vestia uma camisa índia bordada, tinha um medalhão azul e prata no pescoço e carregava nas costas um violão. Era magro, quase um fiapo, e tinha os movimentos de um dançarino ou um mestre de caratê. Mas não me ocorreu sentir medo dele.
Olhou-me dos pés à cabeça e disse:
— Isso não vai resolver o seu problema, você sabe.
Senti vergonha de mim mesmo. Não sabia mais ao certo o que tinha em mente ou por que havia seguido a garota. Fazia anos que fugira da morte pela primeira vez e já começava a pensar os outros como se fossem irreais, pois nada que fizesse poderia afetá-los de forma permanente. Sentia a cabeça girar. Apoiei-me na parede e escorreguei até o chão, onde me sentei. Até que ponto havia chegado!
Ele me levou de volta para o bar, ofereceu-me um suco de laranja com biscoitos e me fez falar. Contei-lhe tudo. Por que não, já que eu poderia desdizer tudo que dissesse, desfazer tudo que fizesse? Mas eu não tinha pressa. Ele escutou tudo, sem dizer nada. Ninguém havia escutado antes a história completa. Não sei explicar o efeito que aquilo teve sobre mim. Passar tantos anos sozinho e depois, ainda que apenas por um momento... Aquilo me atingiu com a intensidade de uma dose de LSD. Ainda que apenas por um momento, não estava mais sozinho.
Saímos de braços dados. Meio quarteirão adiante, o Dançarino parou, na entrada de um beco. Estava escuro.
— Há alguma coisa errada ali — disse, em tom preocupado.
Segurei-o.
— Espere. Você não vai querer entrar aí...
Ele se desvencilhou e entrou no beco. Depois de um momento de hesitação, fui atrás. O beco cheirava a cerveja choca, misturada com lixo e vômito. Meus olhos logo se acostumaram à escuridão. Lisa estava encolhida em um canto, atrás de latas de lixo. As roupas dela tinham sido cortadas com uma faca e estavam espalhadas pelo chão. Tinha manchas de sangue nas coxas e em um dos braços. Não parecia nos ver. O Dançarino se agachou ao lado dela e disse alguma coisa baixinho. Ela não respondeu. Ele tirou a camisa e a enrolou na moça. Depois, tomou-a nos braços e levantou-a.
— Ajude-me a levá-la para o meu apartamento.
— Apartamento uma ova! É melhor chamarmos a polícia! — disse eu.
— Chamar os porcos? Está maluco? Quer que eles a estuprem também?
Eu tinha me esquecido de que aqueles eram os anos sessenta. Carregamos a moça até o fusca do Dançarino e fomos ao apartamento dele, na Hashbury. No caminho, ele me explicou em voz baixa o que havia acontecido, um lado negro do verão do amor que eu não conhecia, Tinham sido os greasers, afirmou. Eles apareciam em Berkeley porque ouviam dizer que as garotas hippies davam para qualquer um de graça, e ficavam zangados quando encontravam alguma que pensava diferente.
Os ferimentos de Lisa eram quase todos superficiais. O Dançarino lavou a moça, colocou-a na cama e ficou a noite inteira a seu lado, falando, cantarolando e tentando acalmá-la. Dormi em um dos colchões da sala. De manhã, quando acordei, os dois estavam juntos na cama. Lisa dormia tranquilamente. O Dançarino estava acordado, abraçando-a. Eu estava consciente o bastante para perceber que aquilo era tudo que estava fazendo, abraçá-la, mas mesmo assim senti ciúme, e não sabia bem de qual dos dois.
Uma vez, fui assistir à crucificação. Peguei um jato de Santa Cruz a Tel Aviv e um ônibus de Tel Aviv a Jerusalém. Chegando a uma colina perto da cidade, mergulhei no mar de Dirac. Estava usando meu terno com colete. Não havia como evitar isso, a não ser que quisesse viajar despido. A terra era surpreendentemente verde e fértil, muito mais do que eu esperava. A colina agora fazia parte de uma fazenda; estava coberta de videiras e oliveiras. Escondi as bobinas atrás de umas pedras e desci até a estrada. Não fui muito longe. Depois de andar uns cinco minutos, cruzei com um grupo de pessoas. Tinham cabelos pretos, eram morenos e usavam túnicas brancas, muito limpas. Seriam romanos? Judeus? Egípcios? Como poderia saber?
 Falaram comigo, mas não compreendi uma palavra. Depois, dois deles me agarraram, enquanto um terceiro me revistava. Seriam ladrões atrás de dinheiro? Romanos, em busca de algum documento de identidade? Dei-me conta de quão ingênuo havia sido em pensar que poderia arranjar roupas adequadas e me misturar à multidão. Não encontrando nada, o que havia me revistado me deu uma surra e derrubou-me no chão. Enquanto os outros dois me seguravam, sacou uma adaga e cortou os tendões das minhas pernas. Tive a impressão de que estavam sendo misericordiosos, poupando-me a vida. Foram embora rindo e conversando alguma coisa incompreensível. Minhas pernas não serviam mais para nada. Estava com um braço quebrado. Levei quatro horas para me arrastar de volta à colina, usando o braço bom. As pessoas que passavam faziam questão de me ignorar.
Quando cheguei ao esconderijo, precisei de toda a minha força de vontade para apanhar as bobinas de Renselz e enrolá-las no corpo. No momento em que digitei no teclado a combinação de retorno, estava quase inconsciente. Afinal, consegui completar a combinação. As ondas do mar de Dirac convergiram. E eu estava no meu quarto de hotel em Santa Cruz. O teto tinha começado a cair no lugar onde as vigas haviam queimado. Alarmes contra incêndio estavam tocando, mas eu não tinha para onde correr. O quarto estava cheio de fumaça, acre e densa. Tentando não respirar, digitei um código no teclado, para qualquer tempo, para qualquer lugar que não fosse aquele inferno.
E eu estava no mesmo quarto de hotel, cinco dias antes. Respirei fundo. A mulher na cama gritou e tentou se cobrir. O homem que estava trepando com ela estava muito ocupado para se importar. De qualquer modo, eles não eram reais. Ignorei-os e escolhi com um pouco mais de cuidado o lugar para onde iria em seguida. De volta a 65, pensei. Digitei a combinação e estava de pé em um quarto vazio no trigésimo andar de um hotel em construção. Uma lua cheia banhava as silhuetas dos guindastes silenciosos. Experimentei flexionar as pernas. A lembrança da dor estava começando a desaparecer. Era compreensível, pois aquilo nunca havia acontecido. Viajar no tempo. Não é a imortalidade, mas está bem perto. É impossível mudar o passado, por mais que se tente.
De manhã, explorei o apartamento do Dançarino. Era louquíssimo, um apartamentozinho de terceiro andar a um quarteirão da Haight-Ashbury que havia sido convertido em uma coisa de outro planeta. O chão estava todo coberto de colchões velhos; em cima deles, uma confusão de colchas, travesseiros, cobertores indígenas, animais empalhados. Você tinha que tirar os sapatos antes de entrar; o Dançarino sempre usava sandálias mexicanas de couro, com sola de pneu. Os radiadores de calor, que não funcionavam, tinham sido pintados com tinta fosforescente. As paredes estavam cobertas de cartazes: gravuras de Peter Max, desenhos de Eschers em cores berrantes, poemas de Allen Ginsberg, capas de discos, posters de movimentos pacifistas, um letreiro que dizia "Haight is Love", avisos dos dez mais procurados pelo FBI, arrancados de alguma agência dos Correios, com as fotos de famosos ativistas contra a guerra circuladas com pincel atômico e um enorme símbolo da paz cor-de-rosa. Alguns dos cartazes estavam iluminados com luz negra e brilhavam com cores impossíveis. O ar estava pesado de incenso e do cheiro de palha queimada da maconha. Em um canto, um toca-discos tocava "Sergeant Pepper's Lonely Hearts Club Band" interminavelmente. Quando uma cópia do disco ficava muito arranhada, um dos amigos do Dançarino lhe dava outra de presente.
Ele jamais trancava a porta. ("Se alguém estiver a fim de me roubar, tudo bem, provavelmente está mais necessitado do que eu, não é? Tá limpo".) As pessoas apareciam lá a qualquer hora do dia ou da noite. Deixei o cabelo crescer. O Dançarino, Lisa e eu passamos aquele verão juntos, rindo, tocando violão, fazendo amor, escrevendo poemas idiotas e canções mais idiotas ainda, experimentando drogas. Era a época em que o LSD estava no auge, em que as pessoas ainda não temiam o mundo estranho e lindo que fica do outro lado da realidade. Era uma época em que valia a pena viver. Sabia que era o Dançarino que Lisa amava realmente, e não eu, mas naquele tempo o amor livre estava no ar como o perfume das papoulas, de modo que não tinha importância. Pelo menos, não muito.
As ondas do mar de [4]Dirac viajam para trás no tempo. Depois de minha curta expedição, decidimos tentar algo mais ambicioso: mandar alguém para o passado remoto e recolher provas da viagem. Ainda estávamos com medo de modificar o passado, embora os matemáticos assegurassem que o presente não podia ser alterado. Colocamos filme na câmara e escolhemos cuidadosamente nosso destino. Em setembro de 1853, um viajante chamado William Hapland e sua família atravessaram a Serra Nevada para chegar à costa da Califórnia. A filha Sarah registrou em um diário que, ao chegarem ao pico de Parker, avistou pela primeira vez o Oceano Pacífico, no exato instante em que o sol tocava o horizonte, "em uma chama de rubra glória". O diário existe até hoje. Não foi difícil nos escondermos com a câmara atrás de umas rochas e filmar a passagem da carroça puxada por bois que conduzia os cansados viajantes.
Nosso segundo alvo foi o grande terremoto de São Francisco, em 1906. De um armazém abandonado que sobreviveria ao tremor (mas não ao incêndio que se seguiu), observamos e filmamos os edifícios desabando e os bombeiros lutando em vão para apagar as centenas de focos. Voltamos ao presente momento antes de o fogo chegar ao armazém. Os filmes ficaram sensacionais. Estávamos prontos para contar ao mundo. Dali a um mês, haveria uma reunião da Sociedade Americana para o Progresso da Ciência, em Santa Cruz. Liguei para o coordenador e consegui que encaixasse no programa uma palestra para mim, como cientista convidado, sem revelar o que havíamos conseguido. Pretendia mostrar os filmes durante a palestra. Eles nos tornariam instantaneamente famosos.
No dia em que o Dançarino morreu, demos uma festa de despedida, apenas Lisa, ele e eu. O Dançarino sabia que estava para morrer; eu tinha contado a ele e ele havia acreditado, não sei bem por quê. A verdade é que sempre acreditava no que eu dizia. Ficamos a noite inteira acordados, tocando o bandolim de segunda mão do Dançarino, pintando nossos corpos com desenhos psicodélicos, jogando Monopólio, fazendo uma centena de coisas tolas e simples cujo único sentido era o fato de que seria a última vez. Por volta das quatro da manhã, quando começava a clarear, fomos até a baía e, nos abraçando para nos aquecermos, começamos uma viagem. O Dançarino tomou uma dose maior, porque ele não iria mesmo voltar. A última coisa que disse foi que não deixássemos nossos sonhos morrerem; ele queria que continuássemos juntos. Enterramos o Dançarino, por conta da prefeitura, em uma cova de indigente. Eu e Lisa nos separamos três dias depois.
Continuei a manter um contato superficial com Lisa. No final dos anos setenta, ela voltou à universidade, primeiro para um curso de administração de empresas, depois para estudar Direito. Acho que passou algum tempo casada. Todo ano trocávamos cartões de Natal, até que perdi sua pista. Anos mais tarde, recebi uma carta de Lisa. Dizia que finalmente tinha conseguido me perdoar por ter causado a morte de Dan. Era um dia frio e nevoento de fevereiro, mas eu sabia que podia encontrar calor em 1965. As ondas convergiram.
Perguntas que eu esperava da platéia:
P (professor velho e pretensioso): Parece-me que esse salto temporal que você propõe viola a lei de conservação de massa/energia. Por exemplo: quando um objeto é transportado para o passado, uma certa massa parece desaparecer do presente, em uma clara violação da lei de conservação.
R (eu): Como o retorno ocorre no momento exato da partida, a massa permanece constante.
P: Muito bem, mas que me diz da chegada no passado? Ela não viola a lei de conservação?
R: Não. A energia necessária é extraída do mar de Dirac, pelo mecanismo que explico em detalhes no meu artigo para o Physical Review. Quando o objeto retorna ao "futuro", essa energia é devolvida ao mar.
P (jovem físico, em tom interessado): O princípio de incerteza de Heisenberg não limita o tempo que se pode ficar no passado?
R: Boa pergunta. A resposta é sim, mas como tomamos emprestada uma quantidade infinitesimal de energia de um número infinito de partículas, o tempo gasto no passado pode ser arbitrariamente longo. A única limitação é que você deve deixar o passado um instante antes de partir do presente.
Dali a meia hora, iria apresentar o trabalho que colocaria meu nome ao lado do de Newton, Galileu... E Dirac. Eu tinha vinte e dois anos, a mesma idade em que Dirac anunciou sua teoria. Eu era um incendiado, pronto para atear fogo ao mundo. Estava nervoso, ensaiando a palestra no meu quarto de hotel. Tomei um gole de uma garrafa de Coca-Cola que um dos meus alunos tinha deixado em cima da televisão. Os locutores do jornal da noite não paravam de falar, mas eu não estava prestando atenção.
Jamais dei aquela palestra. O hotel já havia começado a pegar fogo; minha morte já tinha sido decretada. Depois de colocar a gravata, dei uma última olhada no espelho e encaminhei-me para a porta. A maçaneta estava quente. Abri a porta e deparei com uma muralha de fogo. As chamas invadiram meu quarto como um dragão furioso. Cambaleei para trás, olhando fascinado para elas.
Em algum lugar do hotel, alguém gritou, fazendo-me voltar à realidade. Estava no trigésimo andar; não havia saída. Lembrei-me da máquina. Corri para o outro lado do quarto e abri a maleta onde estava a máquina do tempo. Com dedos ágeis e seguros, retirei as bobinas de Renselz e as amarrei no corpo. O carpete já estava em chamas, bloqueando a porta. Prendendo a respiração para não me sufocar, digitei um código no teclado e mergulhei no tempo.
Vivo retornando a esse momento. Quando apertei a última tecla, o ar já estava quase irrespirável de tanta fumaça. Eu devia ter menos de trinta segundos de vida. Com o passar dos anos, esse tempo foi reduzido para menos de dez segundos. Vivo de tempo emprestado. Acho que todos nós vivemos assim, talvez. Mas eu sei quando e onde meu débito será saldado.
O Dançarino morreu em 9 de fevereiro de 1969. Era dia frio e nevoento. De manhã, ele se queixou de dor de cabeça. Aquilo era estranho, pois o Dançarino nunca sentia dor de cabeça. Decidimos dar uma volta lá fora, no meio do nevoeiro. Foi bonito. Era como se estivéssemos sozinhos em um mundo estranho e informe. Eu já me havia esquecido completamente da dor de cabeça de Dan quando, olhando para o mar de névoa que se estendia desde o parque até a baía, ele caiu. Estava morto antes de a ambulância chegar. Morreu com um sorriso secreto no rosto. Jamais entendi aquele sorriso. Talvez estivesse sorrindo porque a dor havia desaparecido. Dois dias depois, Lisa se matou.
Vocês, pessoas comuns, podem mudar o futuro. Podem gerar filhos, escrever romances, fazer abaixo-assinados, inventar máquinas novas, frequentar coquetéis, concorrer à presidência. Tudo que vocês fazem afeta o futuro. O que eu faço, não. Para mim, é tarde demais. Minhas ações são escritas em água corrente. Como não tenho nenhuma influência sobre o futuro, também não tenho responsabilidades. Não faz diferença o que eu fizer. Nenhuma diferença.
Quando fui para o passado pela primeira vez, fugindo do fogo, tentei de todas as formas mudar o meu destino. Denunciei o incendiário, discuti com o prefeito, cheguei a ir à minha casa e implorar a mim mesmo que não fosse à conferência.
Entretanto, não é assim que o tempo funciona. Não importa o que eu faça, conversar com um governador ou dinamitar o hotel, quando chego àquele momento crítico (o presente, o meu destino, o momento em que fugi), desapareço do lugar em que estou e volto ao quarto do hotel, com o fogo ainda mais próximo. Restam-me menos de dez segundos. Sempre que mergulho no mar de Dirac, tudo que mudei no passado desaparece. Às vezes faço de conta que as mudanças que provoco no passado podem criar novos futuros, embora saiba que isso é impossível. Quando volto ao presente, todas as mudanças são apagadas pelas ondulações da onda convergente, como quem apaga um quadro-negro depois da aula.
Algum dia vou voltar e enfrentar meu destino. Por enquanto, porém, vivo no passado. É uma boa vida, suponho. Você se acostuma com o fato de que nada que fizer terá qualquer efeito sobre o mundo; isso lhe dá uma certa sensação de liberdade. Estive em lugares onde ninguém esteve, vi coisas que ninguém viu. Abandonei a física, é claro. Nada que eu descobrisse sobreviveria àquela noite fatal em Santa Cruz. Talvez algumas pessoas tivessem continuado pelo puro prazer do conhecimento. A mim, porém, falta motivação.
Por outro lado, existem compensações. Sempre que volto ao quarto do hotel, nada mudou, exceto minhas memórias. Tenho novamente vinte e oito anos, estou usando de novo aquele terno com colete, sinto na boca o gosto indefinido de Coca-Cola choca. Cada vez que retorno, gasto um pouquinho de tempo. Um dia, não me restará mais nada.
O Dançarino não morrerá nunca. Não deixarei que isso aconteça. Cada vez que chego àquela última manhã de fevereiro, ao dia em que ele morreu, volto a 1965, àquele dia perfeito de junho. Ele não me conhece, ele nunca me conhece. Mas nós nos encontramos naquela colina, os únicos dispostos a passar o dia sem fazer nada. Ele está deitado de costas, dedilhando preguiçosamente as cordas do violão, soprando bolhas de sabão e olhando as nuvens brancas no céu azul. Daqui a pouco vou apresentá-lo a Lisa. Ela também não vai nos conhecer, mas não há problema. Temos muito tempo.
— Tempo — digo para o Dançarino, deitado no parque da colina. — Temos muito tempo.
—Todo o tempo que existe — concorda ele.



[1] Ondulações no mar de Dirac, conto de Geoffrey A. Landis que foi publicado no Brasil na Isaac Asimov's Magazine, Volume 5. Prêmio Nébula de 1989. O mar de Dirac é usado como base para uma viagem no tempo.

[2] 1ª NOTA SOBRE A TEORIA E A PRÁTICA DAS VIAGENS NO TEMPO SEGUNDO DIRAC:
1) Só é possível viajar para o passado.
2) O objeto transportado retornará exatamente ao tempo e local de partida.
3) Não é possível transportar objetos do passado para o presente.
4) Ações no passado não podem mudar o presente.

[3] 2ª NOTA PARA UMA PALESTRA SOBRE VIAGENS NO TEMPO DE DIRAC
O início do século XX foi uma época de gigantes do intelecto que talvez jamais venha a ser igualada. Einstein tinha acabado de inventar a teoria a relatividade e Heisenberg e Schrodinger a mecânica quântica, mas ninguém ainda sabia como compatibilizar as duas teorias. Em 1930, outra pessoa abordou o problema. Chamava-se Paul Dirac. Tinha vinte e oito nos de idade. Teve êxito onde os outros haviam falhado. A teoria de Dirac foi de um sucesso sem precedentes, exceto por um pequeno detalhe. De acordo com a teoria, a energia de uma partícula podia ser positiva ou negativa. Que significava uma partícula com energia negativa? Como alguma coisa podia ter energia negativa? E por que as partículas comuns, de energia positiva, não caíam nesses estados de energia negativa, liberando uma grande energia no processo?
Você e eu poderíamos simplesmente ter postulado que era impossível uma partícula de energia positiva sofrer uma transição para um estado de energia negativa. Entretanto, Dirac não era um homem comum. Era um gênio, o maior físico de sua geração, e tinha uma resposta. Se todos os estados possíveis de energia negativa já estivessem ocupados, uma partícula não poderia cair para um estado de energia negativa. Ahá! Assim, Dirac postulou que o universo inteiro está totalmente preenchido por partículas de energia negativa. Elas nos cercam, nos permeiam, no vácuo do espaço sideral, no centro da Terra, em todos os lugares onde uma partícula pode estar. Um "mar" infinitamente denso de partículas de energia negativa, mar de Dirac. A teoria de Dirac tinha falhas, mas isso fica para depois.

[4] 3ª NOTA PARA UMA PALESTRA SOBRE VIAGENS NO TEMPO DEDIRAC:
Depois de postular que todo o espaço estava preenchido por um mar infinitamente denso de partículas de energia negativa, Dirac foi mais além e se perguntou se nós, no universo de energia positiva, poderíamos interagir com esse mar de energia negativa. Que aconteceria, digamos, se você fornecesse energia suficiente a um elétron para retirá-lo do mar de energia negativa? Duas coisas: primeiro, você criaria um elétron aparentemente do nada. Segundo, você deixaria um "buraco" no mar. O buraco, percebeu Dirac, se comportaria como se fosse uma partícula, uma partícula exatamente igual a um elétron, exceto por um detalhe: teria a carga oposta. Mas se o buraco um dia encontrasse um elétron, este cairia de volta no mar de Dirac e tanto o elétron como o buraco desapareceriam em uma grande explosão. O buraco do mar de Dirac foi batizado com o nome de pósitron. Dois anos depois, quando Anderson descobriu o pósitron e confirmou a teoria de Dirac, foi quase um anticlímax.
Durante os cinqüenta anos seguintes, a realidade do mar de Dirac foi quase ignorada pelos físicos. A antimatéria, os buracos do mar, era a parte importante da teoria; o resto não passava de um artifício matemático.
Setenta anos depois, lembrei-me da história que o professor de matemática transfinita me havia contado e combinei-a com a teoria de Dirac. Da mesma forma como seria possível alojar um hóspede a mais em um hotel com um número infinito de quartos, descobri que poderia pedir energia emprestada ao mar de Dirac. Para dizer a mesma coisa de outra forma: aprendi a fazer ondas.

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