POR DAVID DA COSTA COELHO
A primeira sensação de que você é diferente começa na infância, e na minha, de certa forma foi ainda pior porque eu nasci no interior, não tinha amigos para brincar e a busca pela sobrevivência foi a minha segunda marca de solidão. Embora tenha nascido no interior do RJ, de certa forma posso ser chamado de retirante porque meu pai mudou-se de um lugar para outro porque sempre tinha que trabalhar para fazendeiros locais em troca de uma terça parte do que produzia, e como comprava alimentos no armazém do dono – escravidão por dívida – se ele não tivesse tido a vontade de ser algo mais, meu mundo seria pior.
Mas meu pai veio para uma cidade maior aqui da capital – São Gonçalo - e aos trancos e barrancos nós sobrevivemos com muita luta e sacrifício, e aos 11 anos eu entrei na escola para me alfabetizar, e aos 15 saí dela para ganhar dinheiro trabalhando para ajudar a criar minha família. Voltaria aos 22 para concluir os estudos, e levaria ainda um tempo para eu fazer faculdade, mas fiz...
Nesse intervalo de estudo oficial, eu lia tudo que podia sobre qualquer assunto, até em luz de vela na roça porque eu tinha a compulsão de ler e aprender, e aos 15 fui trabalhar na casa de uma família muito rica, mas a maior riqueza que eles tinham era uma biblioteca com centenas de livros e enciclopédias, e o mundo se abriu para mim como jamais foi possível anteriormente.
Mas eu sofria também de outra patologia, às vezes no trabalho diário o meu corpo estava fazendo uma coisa e minha mente outra, pois eu imaginava mundos, contos e histórias em todos os locais que estudei e trabalhei. E desde sempre eu me via cercado de pessoas velhas que passavam seu conhecimento para mim, e me ouviam, mesmo eu sendo um garoto leigo aos olhos daquelas pessoas experientes de vida em todo sentido, sempre que podiam passavam muito tempo conversando comigo, me ensinando, ou apreciando minha erudição para os problemas que me apresentavam; e às vezes neste desabafo havia o choro, algo que já vi muito nas sessões de terapia porque há choros perdidos em todos nós, e quando há uma pessoa que nos entenda, ele vem com força porque sabe em quem confiar.
Havia algo neles que eu já nesta época inocente via profundamente, como uma espécie de vaidade e orgulho em ter alguém jovem para dar ouvidos a quem já tinha vivido muito, e assim sempre que me viam me chamavam e passavam muito tempo conversando comigo, me ensinando, ou apreciando minha erudição para os problemas que dividiam comigo e eu apontava a solução.
Mas em minha mente eu queria mais, achar alguém que me permitisse conversar de verdade, falar por horas e ouvir por horas as coisas que se recusavam a dormir em minhas infinitas realidades, difícil num mundo de classes sociais separadas, sem dinheiro e lutando para comer o almoço no horário da janta, e ainda juntando dinheiro para comprar livros e revistas que me atraiam mais do que uma mulher linda, e eu em plena puberdade sexual, com tudo que isso representava...
Meu mundo se dividia entre trabalhos diversos e ler, ler, e ler até chegar ao ponto de desmaiar em cima de livros e revistas, posso dizer que de todo dinheiro que ganhei nessa época, metade era para revistas em quadrinhos, cientificas e livros variados vendidos em bancas de jornal ou em sebos. E de centenas de autores que li, os meus favoritos eram Lobsang Rampa, e James Clavell, e dos clássicos, o eterno Miguel de Cervantes – Dom Quixote – porque faz a pessoa sonhar e não se prender a nada a não ser em suas aventuras, assim como Daniel Defoe em seu fantástico Robinson Crusoe. Li todos os autores nacionais, mas a cantilena da realidade brasileira não me enchia os olhos, nem tão pouco os temas centrais de brigas familiares, ciúmes e traições. Isso já estava em novelas, mas como eu sou masoquista, li O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro...
Mas foi na ficção científica que eu realmente me encontrei e pude realmente aprender um pouco mais de mim mesmo, lia esse gênero com tanta fome que às vezes me esquecia de comer, assistia a todas as séries de ficção cientifica, inclusive filmes do inicio do século, e finalmente todas as séries de ficção que saíram na televisão, digo todas mesmo.
Mas minha vida mudou muito quando vi um livro em forma de quadrinhos que comprei num sebo, chamava-se Introdução à Física. Nele eu descobri sobre fissão nuclear, fusão nuclear, e física quântica e teoria dos universos paralelos, e aquilo abriu minha mente para as realidades que eu via em minha mente desde moleque nos livros e revistas de ocultismo que li, muitos deles da Rosa Cruz. As séries de ficção só arremataram esse conhecimento porque elas sempre contaram com consultores acadêmicos para engrandecer suas tiragens, e foi aí que eu percebia que estava ainda mais isolado de pessoas comuns, não importando se pobres ou ricos porque sempre orbitei nestes horizontes a trabalho e amizade.
Minha mente fervilhava de ideias e sonhos do que falar e escrever, mas para quem? Mas aí veio a internet e descobri amizades virtuais, sites de debates e conspirações, e ali eu realmente podia falar e debater por horas, e às vezes nem dormia. A internet me trouxe também namoros, sexo, amigos, e um lugar para não me sentir tão só, mas até nela isso é difícil porque todo ser humano padece de uma doença incurável chamado vaidade, e não há ninguém mais vaidoso do que o idiota que acredita que sabe tudo, e quer tutelar pessoa que não sabe nada – meu caso - como na época em que eu escrevia ficção e as pessoas me diziam como eu deveria pensar e escrever, sendo que os mesmos nada faziam.
Então eu me abstive deles e me entreguei a mim apenas lendo, e um dia do nada meu mundo mental começou a assaltar minha mente e eu peguei um caderno e escrevi direto 66 paginas de meu primeiro livro de ficção; O PORTAL DO INFINITO. Nesta época eu era casado e muito infeliz, e minha inspiração terminou, mas após uma briga com a mãe de meu filho, fui para o horto de Niterói e escrevi mais 150 páginas a caneta, e conclui meu 1º livro naquele dia. Eu vivia com pessoas, mas meu mundo não estava neles porque ao lado delas eu era mais solitário que um naufrago em uma ilha.
Separei-me, arrumei outro serviço, e comecei a escrever compulsivamente, ao mesmo tempo em que lia um monte de jornais e revistas, nascia o 2º livro, O Evoluído. E o 3º, Carrascos Sem Distintivos, e o 4º, Assumir ou Sumir, e o 5º, O genoma de Cristo, e ainda assim eu fazia Faculdade de História e tinha que manter notas a minha altura, além de ter que ler aquele monte de livros chatos que compõe a grade. Evidente que foi um passeio para mim a conclusão da faculdade, e ainda escrevi meu 6º livro, Amor Acima de Tudo. Depois escrevi mais três, e me dediquei apenas a dar aulas e manter um blog na internet, O PORTAL DO infinito. Hoje ele tem quase um milhão e meio de acessos, umas quinhentas publicações e inumemos contos que escrevi.
E quanto à solidão? Continuo cercado de pessoas e me vejo como alienígena neste mundo de pessoas vazias, com muito poucas para conversar ou entender, e de longe uma forma de me fazer sentir melhor é a segunda coisa que faço bem que é terapia. Nasci com o dom de ouvir e apontar caminhos para as pessoas e estudei muito para fazer isso cada vez melhor, e a cada dia me surpreendo com as coisas que leio, as pessoas que trato, ou livros do tema, ou documentários de psiquiatria, a exemplo dos CRIMES DA PSIQUIATRIA. 10 horas de arrepiar o cabelo de quem se envolve nas doenças da mente e nas canalhices do mundo.
E esse é um legado do solitário intelectual, cercado de pessoas, de tecnologia, de tudo que poderia fazer a vida um tanto melhor, mas falta algo essencial, como no conto de Machado de Assim, Dom Casmurro:
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim.
Machado foi direto ao ponto porque não se engana a quem se vê como reflexo no espelho. A razão da solidão intelectual é que você compartilha o mundo com pessoas, as ama como parentes próximos ou distantes, amigos, ou companheiros de casa e alcova; mas o vazio que vem depois não lhe permite interagir com eles como se fossemos normais, nós não somos porque carregamos um vazio que nada preenche, nem tão pouco os rios de lágrimas que deixamos escorrer nos segundos de silencio que dormem em nossa mente...
Uma explicação mais intelectual seria que nos falta um gene, um que nos faça mais ligado a esse mundo, que nos permita ser mais humanos, e não um passo na outra humanidade que seremos no futuro, uma humanidade que se expande criando e imaginando coisas para um bem maior, e que infelizmente nos torna invisíveis porque os de estágio abaixo não podem compreender nossos mundos. E a tristeza da solidão intelectual é que por mais que não queiramos pessoas nos circundamos, padecemos do paradoxo de abelha rainha, e como elas; somos cercados numa colmeia de gente a nos buscar por qualquer motivo. E nessas horas só há um refúgio, e me vem à mente e as palavras de uma musica que me faz sentir tudo que escrevo:
Esses sonhos vão embora quando eu fecho meus olhos. Cada segundo da noite eu vivo outra vida. Estes sonhos que dormem quando está frio lá fora. Cada momento que estou acordado, mais longe estou. These Dreams, Heart
Esse gene que nos falta não exclui nossas emoções, na verdade ele nos aprofunda de forma tão intensa que poucas pessoas são dignas de ver nosso interior, e aí vem à parte mais conflitante, não dividimos isso com pessoas que sejam comuns e sim extremamente complexas, e isso no final tem um custo ainda maior porque na história que elas vivem, nos cabe um tempo sim, mas uma hora termina; e nesse momento você percebe outra dor, a dor de que só há uma pessoa neste mundo que realmente pode compreender suas dores, e pra isso criamos mundos, porque lá nossa dor maior pode se diluir para não nos matar antes desta dor que só nossa solidão entende...