Por Gilson Dantas
1.Tambores de guerra.
Os interesses e a enorme pressão política e militar das grandes potências se cruzam de forma decisiva na questão síria. Algumas das contradições que tornam aquele país uma peça-chave no tabuleiro do Oriente Médio e de parte da Ásia nos marcos dos conflitos inter-potências serão aqui problematizadas.
Nesse sentido, há uma notícia sobre os Estados Unidos que, embora pouco divulgada, é dramaticamente ilustrativa do quanto a crescente tensão geopolítica (que envolve países como a Síria) afetam e estão vinculados aos interesses de potências imperialistas como os Estados Unidos.
A notícia é a da assinatura, por parte de Obama, em 16/3/2012, de uma Ordem Executiva que amplia completamente os poderes presidenciais “para a preparação diante de desastres”; disponível no site da Casa Branca [1] : este documento legal autoriza o presidente a controlar e distribuir por decreto a energia, a produção, o transporte, a alimentação e a água, caso a defesa e segurança nacionais estejam supostamente em perigo. E mais, esta ordem não tem sua aplicação limitada a tempos de guerra, mas estende-se a tempos de paz; o presidente, seja ele quem for, escolhe quando recorrer a tais superpoderes. A porta encontra-se, portanto aberta para a presidência, legalmente, submeter, por exemplo, toda a estrutura econômica a uma nova aventura militar, de grande porte, como argumenta Borón (2012).
Esta nova prerrogativa do Executivo norte-americano se dá nos marcos de uma escalada belicista e teria sido precipitada pela certeza, de parte da cúpula norte-americana, de que os planos israelenses para atacar o Irã já teriam entrado em contagem regressiva mesmo que por fora do timing de Washington (SCHORTGEN JR, 2012).
Para além de que os ritmos sejam os imaginados por esses autores, os movimentos políticos dos Estados Unidos, Hillary Clinton à cabeça, têm sido no sentido de aumentar pesadamente a pressão sobre a Síria, nos marcos de um processo que tem vários elementos apontando para uma aventura militar de maiores proporções contra esse país, caso falhem outras opções.
A Síria, em todo caso, não é a Líbia, a ditadura Assad conta com mais estrutura relativa e militar do que a do Khadafi e a própria Síria, além de muitíssimo mais populosa (dez vezes mais) e urbana que a Líbia, é em si mesma, mais ainda em meio à “primavera árabe”, um entroncamento de interesses políticos agudos entre os imperialistas e os candidatos a potências regionais tipo Irã e Turquia, envolvendo ainda a Rússia e a China. Para o Foreign Affairs, a Síria é o “último aliado da Rússia no Oriente Médio” (TRENIN, 2012).
A única base militar da Rússia pelo mundo afora fica precisamente na Síria, aliás tradicional comprador de armas dos russos, com estes dispondo do porto de Tartus e acesso também ao de Latakia, cujo projeto russo para este ano é converter em base naval; Rússia, Estados Unidos, Inglaterra, França e também Israel têm fortes interesses no gás sírio e em um gasoduto, crítico para a Europa, que, para funcionar, depende da boa vontade síria.
Colossais jazidas de gás estão localizadas na plataforma marinha síria e estendendo-se até Israel, passando pelo Líbano. Uma vista ao mapa ajuda a entender o peso dos marcos geográficos nessa disputa de interesses que envolve grandes petroleiras e tira o sono de estrategistas russos.
A Total, francesa, e a British Petroleum (BP), esta desde 1990, vêm se lançando sobre o gás das águas sírias em disputa com Líbano e Síria. Israel, por sua vez, conseguiu deter as operações da BP, sob protestos do governo Tony Blair, a partir da vitória eleitoral do Hamas em 2006 (que passaria a controlar uma parte do litoral de Gaza onde há gás). Neutralizada a ofensiva da BP, a pretexto de “governo terrorista” do Hamas, Israel se lançou com tudo sobre aquelas reservas bilionárias e estratégicas. A disputa agora, por grandes reservas de gás (virtualmente só superadas pelas da Rússia, Irã, Qatar) eclode novamente, tomando as cores da questão síria. Como lembra Armanian (2012):
“Os imensos campos de petróleo e gás de todo o Oriente Médio mediterrâneo são uma tentação para os Estados Unidos e a União Europeia (UE). Depois do fracasso do Ocidente no projeto do gasoduto “Nabucco” – que diversificaria o fornecimento energético da UE com a importação de gás desde o mar Cáspio ao Mediterrâneo, evitando a Rússia – a UE considera mais viável o “Arab Gas Pipeline” (gasoduto árabe) com a participação da Síria, Jordânia e Líbano, que conectaria o gasoduto do norte da África à Turquia, ao Mediterrâneo. Daí o apoio do Kremlin ao seu aliado Assad e, por outro lado, o interesse de Ankara em derrocá-lo: converteria a Síria na primeira porta energética da Ásia para a Europa”.
Para além desses marcos econômicos, e no contexto de uma política ampla e reacionária conduzida pelos Estados Unidos, potências europeias, aliados menores e envolvendo interesses da Rússia e China, uma contradição política também salta aos olhos: a de que a tentativa de Assad, de repressão permanente, possa levar à guerra civil; e aqui entraria na fogueira a questão palestina, libanesa, de Israel, dos curdos/Turquia, com chance de perda do controle da situação por parte do próprio imperialismo para não mencionarmos o clã Assad.
Não se pode perder de vista, tampouco, que o pano de fundo dessa movimentação e das tensoes em torno da Síria não é de afirmação da hegemonia do imperialismo norte-americano, que está mergulhado até os ossos em uma crise econômica histórica. Crise na qual, o modelo anglo-estadunidense de desenvolvimento econômico do mundo, que dominou no período pós-Guerra Fria de triunfalismo do livre-mercado na década de 1990, está desacreditado, no argumento de Harvey (2011). Na verdade, a escalada militar dos Estados Unidos desta década anterior não lhe permitiu reverter sua decadência; e se hoje ameaçam Síria e Irã, aqui há claros elementos de fuga para a frente. Os Estados Unidos armam aventuras militares naquela região estratégica por conta do petróleo, do gás, como se sabe, só que agora fustigados pela ´primavera árabe´ (que está provocando ganhos relativos como na Líbia mas também realinhamentos e riscos geopolíticos para os Estados Unidos) e ao mesmo tempo em que não pisam em solo tão firme: não conseguiram estabilizar o Afeganistão, também saem do Iraque sem hegemonizá-lo politicamente e se esforçam em deter um Irã que, relativamente, tem se fortalecido como potência regional e não o contrário (conta com peso político dentro do próprio Iraque).
Agora tentam uma cartada de risco na Síria onde a aposta é ainda mais alta; de acordo com o historiador de Oriente Médio, Olivier Roy, a Síria é praticamente “o único país no qual a chamada Primavera Árabe pode mudar o panorama geoestratégico e toda a paisagem da região” (New York Times de 26/2/12).
De toda forma, os planos norte-americanos mais ambiciosos de neutralizar o Irã, começando pela Síria, devem ser entendidos nos marcos de processos atuais que apontam para grandes fraturas na sua hegemonia (MOLINA, 2012); a Turquia, por exemplo, que já foi muito mais alinhada aos interesses dos Estados Unidos, hoje tenta afirmar-se como potência regional (na condição de maior economia do mundo muçulmano e localizada em ponto estratégico na geopolítica regional), ao mesmo tempo em que o Irã – que tem na China seu maior importador de petróleo - trata de ir na mesma direção. Esta dinâmica, de dois grandes países de população destacadamente antiimperialista, dá uma ideia de como toda ofensiva de Obama/H.Clinton neste momento tem um caráter defensivo, ou de perda de espaço hegemônico.
A questão curda, por exemplo, em sua explosividade, impõe à política norte-americana um permanente risco, seja de choque com a Turquia seja de reanimação do clima de confronto civil no Iraque, mal contornado pela inclusão de setores curdos moderados no governo iraquiano. Ao mesmo tempo, dos 26 milhões de turcos do mundo, 14 estão na Turquia (são 14% da populaçao turca), 6 milhões estão no Irã, 5 milhões no Curdistão iraquiano e um milhão na Síria. Esta dispersão geográfica, que foi artificialmente imposta pelo imperialismo no final da I Guerra, agora se volta contra a tentativa dos Estados Unidos de neutralizá-la ou manipulá-la a seu favor. A volta da guerra separatista curda à agenda, seja a partir do norte do Iraque ou agora, da fronteira sírio-turca, recoloca os Estados Unidos em potencial conflito com a Turquia, um aliado-chave para toda aquela região, único país muçulmano membro da OTAN, forte aliado logístico para os combates no Afeganistão, e com uma burguesia turca reacionária, sanguinária e de peso, hoje também conflitada com Assad mas com fortes pretensões regionais.
A Turquia entra de cheio nessa disputa na Síria com suas ambições regionais perturbadas diante da prolongada e inconveniente instabilidade no país vizinho (a Síria), dos recentes bombardeios de Assad em regiões fronteiriças com repercussão sobre a crítica questão curda; Istambul tenta conjurar o perigo de uma guerra civil descontrolada na Síria - que incluísse os curdos sírios – que possa impactar internamente à Turquia. Lembrando que este país já tem um front semi-aberto no Iraque, onde pretende obsessivamente se lançar sobre o território norte iraquiano-curdo, riquíssimo em petróleo.
Não é ocasional que Istambul acolha a parte mais midiática da oposição a Assad no exterior, o Conselho Nacional. A ideia acalentada pelos turcos nesse momento, contra a opinião da Rússia e China na ONU (Conselho de Segurança) de abrir um “corredor humanitário” na fronteira com a Turquia, converge com a política de aumento da pressão política sobre o clã Assad para substituí-lo; também pretende ser uma janela aberta para tropas da ONU, biombo para qualquer plano de intervenção militar da OTAN tipo a que ocorreu na Líbia. Não há portanto “humanitarismo” algum nas posições turcas ou naquelas do imperialismo em geral; segundo o New York Times de 23/4/12, um porta-voz dos Estados Unidos teria admitido que o motivo para atacar o regime de Assad em Damasco não tem a ver com preocupação pelo povo sírio mas sim atende ao objetivo de isolar o Irã neutralizando seu único aliado no mundo árabe. Ao mesmo tempo o editorial do Washington Post de 22/4/12 chama abertamente pela imediata intervenção militar para derrubar o regime sírio.
O Irã, que tem se alinhado na ONU ao lado da Rússia e China contra as sanções à Síria, sofreria um duríssimo golpe se perdesse seu mais importante apoio no mundo árabe: se as grandes potências atravessarem a “estrada para Damasco”, este pode ser – Teerã tem consciência disso - o primeiro grande passo para golpearem, militarmente, ao próprio Irã. Aliás, o mal-confessado plano que vem sendo engatilhado pelo governo sionista de Israel é exatamente este, e daí vem sua ameaça regular de bombardear o Irã (a exemplo do que fez na Síria e Iraque em outras condições). De toda forma, as ameaças – ou as medidas como a da Ordem Executiva acima citada – estão para além da retórica, como também as ameaças de Israel. Por sua inserção mais forte na região, os sionistas sentem a pressão de ter que lidar mais imediatamente e abertamente com o fortalecimento regional do Irã; também enfrentam forte crise política interna, com o ressurgimento do movimento pacifista etc.
É certo que “a política imperial de arruinar e dominar na Líbia serve como ´modelo´para a Síria” (PETRAS, 2012b), mas é igualmente correto levar em conta os elementos acima que tensionam e complicam a tentativa, em marcha, de recolonização da Síria a frio, ou de outra forma, por parte das potências imperialistas.
De toda forma, nem a derrubada manu militari de Assad ou mesmo um improvável acordo para reformar o regime, sinalizam com qualquer solução estável para a caixa de Pandora que se abriu na Síria.
A intervenção militar – ante a qual Obama hesita antes das eleições e também diante da sua crise no Afeganistão, na verdade desataria mais e não menos tensão regional, o que pode incluir alguma resposta intempestiva de Israel.
A oposição síria encarnada no Conselho Nacional Sírio (CNS) é confiável aos interesses do imperialismo, mas este percebe sua debilidade estrutural comparada com a base interna que encontrou para a intervenção da OTAN na Líbia: ela é dividida politicamente (inclusive sobre a intervenção) e também sobre o controle e o papel do Exército Livre da Síria (uma agrupação de desertores de baixa patente baseada na Turquia). O CNS já fracassou em duas recentes reuniões (Na Tunísia e na Turquia). E tanto o CNS, assim como a outra oposição, a Coordenação Nacional pela Mudança Democrática (CNMD), com suas divisões internas e ambivalência quanto à intervenção imperialista, criam uma situação mal-resolvida para as forças imperialistas, mesmo quando Assad em sua fúria repressiva contra-revolucionária oferece pretextos de bandeja para uma ação externa. De toda forma o imperialismo move suas peças para tentar impor sua política reacionária contra os povos do O. Médio.
2.Crise interna da Síria
Mergulhada, a partir do primeiro semestre de 2011, na turbulência social com protestos de massa, estes receberam e recebem a brutal resposta através de assassinatos indiscriminados pelo regime dos Assad (o irmão do presidente chefia a polícia sanguinária; o primo, corrupto e dono da maior fortuna do país, dirige a telefonia etc). As grandes potências imperialistas trataram – seguindo a receita que funcionou na Líbia – de fabricar uma “oposição” aos Assad, fora do país, o chamado CNS, predominantemente pró-intervenção imperialista externa. Esta oposição encontrou apoio turco e muito dinheiro das monarquias árabes mais reacionárias, especialmente Qatar e Arábia Saudita.
Mesmo com sua política de esmagar cada foco de rebelião que surge, sobretudo no interior do país, o grupo Assad continua se desgastando politicamente e enfrentando resistência direta. Sua política vem sendo a de acenar com reformas políticas pífias e, ao mesmo tempo, desfechar aquela repressão maciça.
Não aparece ainda, com visibilidade, uma corrente que construa forte vínculo de massa, na base do posicionamento contra qualquer intervenção militar imperialista, rechaçando armas e qualquer apoio logístico das potencias estrangeiras e que, ao mesmo tempo, proponha a necessária derrubada da tirania e da camarilha Assad e sua substituição por um governo revolucionário que, para além de uma postura antiimperialista militante, reorganize a economia contra a burguesia apoiadora do regime genocida dos Assad, agora em favor dos mais pobres e sob controle dos trabalhadores. Esta via, de esquerda, está em aberto.
Prevalece, no entanto, em alas da esquerda o maniqueísmo: quem é contra Assad é a favor do imperialismo; ou seja, nesta ótica, não se pode ser contra a camarilha que assassina seu próprio povo – prova de sua ilegitimidade - e também, igualmente, contra qualquer ingerência do imperialismo e seus apoiadores ou das monarquias regionais, da Turquia, dentro da Síria.
Apenas para tomar um exemplo, as posições do WSWS ou World Socialist Web Site – tradicional corrente de esquerda marxista inglesa – de março a abril de 2012, por exemplo, não formulam uma só crítica ao governo ditatorial de Assad [2] ! Essa vem sendo a grande dificuldade do debate sírio em boa parte da esquerda, conforme se vê também no livro de James Petras, de 2012, 2ª. Edição, The arab revolt and the imperialist counterattack, onde defende incondicionalmente os crimes do clã Assad a pretexto de centrar fogo na denúncia do que chama (corretamente) “a guerra da tripla aliança contra um Estado soberano”; falta dialética neste posicionamento, já que ele passa ao largo da inegociável defesa da independência e soberania da classe trabalhadora que vem sendo reprimida ferozmente há mais de 40 anos pela dinastia Assad (seja em sua fase inicial, nacionalista, seja agora, metralhando e bombardeando bairros inteiros e toda multidão que saia às ruas contra o regime). Faz falta aqui o debate sobre a teoria da revolução permanente (TROTSKI, 2008), a nosso ver, um instrumento de análise e de ação que permite abandonar esse maniqueísmo e entender o real sentido da independência política de classe em processos desse tipo e, portanto, a necessidade de não-seguidismo com camarilhas tipo Assad.
Não cabe tal maniqueísmo em uma situação, como a da Síria, que é parte da onda de rebeliões cunhada como “primavera árabe” e que desde março de 2011, passou a incluir a Síria onde se combinavam a tirania que governa o país a ferro e fogo há quase duas gerações em benefício de uma camarilha política ao mesmo tempo em que vinha se agravando um processo de decadência econômica de grandes camadas populares excluídas também politicamente.
A Síria vive sob uma espécie de estado de sítio desde 1963, com base no qual a polícia e a espionagem podem tudo em nome da “segurança nacional”, em um país onde inexiste qualquer coisa parecida com liberdade de reunião e de imprensa.
Certamente o imperialismo e seus aliados regionais estão intervindo para tirar proveito e defender seus interesses expansionistas, mas, de parte de certa esquerda, reduzir a situação síria a uma “conspiração externa” só revela a pobreza política das correntes tipo Chávez ou populistas de todo tipo como o já citado Petras, além dos neo-stalinistas, que querem fechar os olhos para os métodos contra-revolucionários da camarilha Assad.
Um governo que reprime e assassina seu próprio povo não pode merecer da esquerda outra postura senão o repúdio vigoroso, da mesma forma que qualquer intervenção ou ingerência externa, cujo reacionarismo mal se oculta detrás do desgastado palavreado “humanitarista”. Nenhuma potência imperialista pode assegurar qualquer vitória “democrática” para os trabalhadores e o povo sírios.
Qual a lógica de considerar “progressista” qualquer atrito da burguesia síria com as grandes potências, a mesma que apoiou a invasão imperialista do Iraque e a mesma que sempre esmagou a ferro e fogo qualquer sinal de independência por parte da classe trabalhadora? Qual o sentido dos gritos de Petras em defesa do que ele chama um regime “nacionalista, independente e democrático” ou ainda, nas suas palavras, “legítimo e eleito pelo voto”?
É duvidoso que a revolução síria possa vir a ser construída com base na mentira e no oportunismo político de esquerda, assim como tampouco haverá qualquer transformação progressista, sequer minimamente democrática, pelas mãos das tropas da OTAN, dos Estados Unidos ou de qualquer dos seus reacionários cúmplices regionais.
Fonte: http://www.ler-qi.org/O-militarismo-das-grandes-potencias-e-a-questao-siria